O Coração da Floresta

"Há coisas que só se encontram quando se perde o medo de perder."

Evandro Tanaka

Cauã nasceu quando a lua era uma fatia de mandioca no céu escuro, diziam os anciãos. Seu nome significava “gavião”, mas ele sempre se sentiu mais como uma semente ao vento – inquieta, à procura de terra fértil onde pudesse germinar sua própria história. Na aldeia dos Yawanawá, onde o tempo caminhava descalço pelos caminhos de terra batida, cresceu ouvindo as conversas entre as árvores e aprendendo que cada folha era uma palavra no grande livro da floresta. Seu avô, Rudá, era um pajé respeitado, um homem-enciclopédia, cujos olhos guardavam séculos de sabedoria ancestral. E foi ele quem primeiro percebeu a inquietação que crescia no peito do neto, como cipó selvagem.

Uma manhã, quando os primeiros raios de sol desenhavam sombras dançantes no chão da floresta, Cauã tomou sua decisão. Seria como os pássaros migratórios – partiria para descobrir outros céus, outras verdades. “Vovô”, disse ele, a voz trêmula como folha nova, “preciso caminhar para longe. Sinto que há algo me chamando além das montanhas.” Rudá não demonstrou surpresa. Seus olhos antigos pareciam já conhecer aquele momento. “A floresta às vezes expulsa suas sementes para que encontrem novos solos”, respondeu, colocando a mão rugosa no ombro do neto. “Mas lembre-se: não importa aonde você vá, você sempre será filho desta terra. Ela falará com você através do vento, da chuva, do canto dos pássaros.”

Partiu quando a lua era apenas uma promessa no céu do entardecer, levando consigo uma zarabatana feita pelo pai, um colar de sementes abençoado pelo pajé, e no coração, a coragem incerta dos que não sabem aonde vão, mas sabem que precisam ir. Durante meses caminhou pela floresta infinita, aprendendo a conversar com espécies novas de plantas, a interpretar os sinais deixados por animais que jamais havia visto. A floresta ia se revelando em camadas, como se cada passo descascasse uma nova versão da realidade, até que uma noite, após dois meses de caminhada, teve um sonho diferente. Viu uma mulher de pele clara como a lua cheia, cabelos da cor do mel de abelha jataí, olhos verdes como as águas profundas do rio. Ela segurava nas mãos uma planta que pulsava com luz própria, e quando acordou, o coração disparava como se tivesse corrido léguas.

Após mais alguns dias de caminhada, Cauã foi atraído por um burburinho na floresta – vozes humanas falando em uma língua estranha, musicalmente diferente do único idioma que ele conhecera até então. Através da folhagem, viu tendas coloridas montadas numa clareira, equipamentos estranhos que brilhavam ao sol, e pessoas de pele clara se movimentando com uma energia diferente da que conhecia. Entre eles, destacava-se uma jovem mulher que parecia conversar com as plantas, segurando delicadamente as folhas, examinando-as com uma lupa, fazendo anotações em cadernos. Seus movimentos tinham uma reverência que Cauã reconheceu – era a mesma com que seu avô tratava as ervas sagradas. E o mais extraordinário: a mulher tinha exatamente o rosto do seu sonho.

Dr. Sarah Mitchell havia chegado ao Brasil três meses antes, como parte de uma expedição da Universidade de Toronto para catalogar espécies vegetais raras da Amazônia. Aos 23 anos, era uma botânica brilhante, mas carregava no peito uma melancolia que nenhum diploma havia conseguido curar. Crescera em apartamentos urbanos, entre paredes de concreto e jardins artificiais, e sua paixão pelas plantas nascera da descoberta infantil de que os vegetais eram os únicos seres vivos que não a julgavam, que não a decepcionavam e que não partiam. Naquela manhã, enquanto examinava uma orquídea de espécie possivelmente nova, sentiu-se observada. Ergueu os olhos e viu, entre as sombras verdes, um par de olhos escuros que a fitavam com curiosidade e cautela.

Por umas breve momento de eternidade, ambos se encararam através da distância que separava aqueles dois mundos. Sarah sentiu algo se mover dentro do peito, como se uma semente há muito adormecida começasse a brotar. Cauã deu um passo à frente, saindo das sombras. Era alto e esguio, com músculos definidos pela vida na floresta, usando apenas uma tanga tradicional e colares de sementes. Seus cabelos negros caíam pelos ombros como uma cascata de noite. “Hello”, disse Sarah em inglês, a voz trêmula. Cauã inclinou levemente a cabeça, um gesto que em sua cultura significava reconhecimento respeitoso. Então, apontou para a orquídea nas mãos dela e disse algo em sua língua nativa. Sarah não entendeu as palavras, mas compreendeu o tom – havia reverência ali, conhecimento, uma familiaridade com aquela flor que seus estudos universitários jamais poderiam oferecer.

Os outros membros da expedição reagiram com uma mistura de fascínio científico e apreensão quando Sarah apresentou o jovem indígena. Durante os dias que se seguiram, desenvolveu-se entre eles uma comunicação peculiar. Cauã não falava inglês, Sarah não conhecia sua língua, mas ambos falavam fluentemente o idioma das plantas. Ela como uma estudiosa botânica que transbordava conhecimentos acadêmicos e ele como o neto do pajé da tribo, que vivera durante tanto tempo ajudando o avô a ponto de ver as plantas como uma extensão do seu corpo. Cauã indicava propriedades medicinais que Sarah jamais havia imaginado, explicando com gestos delicados como certas folhas, quando mastigadas em lua crescente, curavam feridas que não cicatrizavam. Sarah, por sua vez, mostrava-lhe seus instrumentos, explicava com desenhos na terra como as plantas se reproduziam, como cresciam, como se adaptavam.

“Planta… medicina”, dizia ela, apontando para suas anotações. “Plant… medici”, repetia ele, a pronúncia carregada de sotaque florestal. Uma tarde, quando uma chuva forte os obrigou a se abrigar na mesma tenda, Sarah ousou tocar levemente a mão de Cauã. A pele dele era quente, áspera pelo trabalho, mas o toque era surpreendentemente delicado. Cauã não se afastou. Em vez disso, entrelaçou os dedos nos dela, e ambos ficaram assim, ouvindo o som da chuva na lona da tenda, sentindo algo crescer entre eles como uma planta que não precisava de semente para nascer. Naquele momento, quando seus dedos se tocaram pela primeira vez, foi como se dois rios se encontrassem – águas diferentes que se mesclavam naturalmente, criando uma correnteza nova e poderosa.

Nas semanas que se seguiram, o acampamento científico se tornou um lugar mágico, onde dois mundos se encontravam. Eles criaram sua própria linguagem – feita de gestos, desenhos na terra, palavras emprestadas do xavante e inglês, mas principalmente de silêncios compartilhados e olhares que diziam mais que discursos. Cauã ensinava Sarah a identificar plantas pelo perfume, a sentir a personalidade de cada árvore pelo toque da casca. Ela lhe mostrava como um microscópio revelava mundos invisíveis dentro de uma única gota de seiva, como cada pétala guardava segredos geométricos perfeitos.

Uma noite, quando a lua estava cheia e prateava as folhas da floresta, Cauã levou Sarah para uma caminhada. Guiou-a até uma clareira secreta onde crescia uma árvore imensa, de tronco tão largo que seis pessoas de mãos dadas não conseguiriam abraçá-la. “Avó-árvore”, disse ele em xavante, colocando a palma da mão no tronco rugoso. “Setecentos anos.” Sarah, embora sem entender o que ele havia dito, aproximou-se reverente. Nunca havia estado tão perto de um ser vivo tão antigo. Colocou também a mão na casca, e por um momento teve a impressão de sentir o pulso lento e profundo da árvore, como se ela fosse o coração da própria floresta.

“Beautiful”, murmurou. E pela primeira vez, Cauã sorriu completamente para ela. Sob a luz da lua, ele começou a lhe contar, em sua mistura de línguas e gestos, a lenda da árvore. Como ela havia nascido do amor entre a deusa da terra e o deus do vento, como suas raízes se estendiam até o centro do mundo, e seus galhos tocavam as estrelas. Sarah escutava hipnotizada, não exatamente pelo significado das palavras, mas pela musicalidade da voz dele, pela poesia que brotava natural como água de nascente. Quando ele terminou, ela se aproximou mais, seus corpos quase se tocando na penumbra prateada. Cauã ergueu a mão e tocou delicadamente o rosto dela, como se estivesse tocando uma pétala rara.

“Sarah”, disse ele, pronunciando o nome como uma oração. “Cauã”, respondeu ela… e a maneira como pronunciou o nome dele, com carinho desajeitado, mas sincero, fez o coração do jovem se expandir como flor que se abre ao sol. Beijaram-se, então, sob a bênção da árvore anciã, enquanto a floresta inteira parecia sussurrar suspiros através do movimento das folhas. O beijo foi suave primeiro, hesitante, depois mais profundo, como se estivessem bebendo um do outro a essência que há muito procuravam. As mãos de Sarah exploraram os ombros largos de Cauã, sentindo a força silenciosa dos músculos moldados pela natureza. Ele acariciou os cabelos dourados dela, maravilhado com a textura sedosa, tão diferente da sua própria.

Quando se separaram, permaneceram abraçados, ouvindo a respiração um do outro se misturar com os sons noturnos da floresta. “Você é real?”, sussurrou Sarah contra o peito dele. Cauã riu baixinho, mesmo sem entender o que ela dizia – um som que vibrou através do peito nu até ela. “Sonhei com você antes de te conhecer”, confessou ele, misturando intercalando o idioma indígena com gestos esclarecedores, de forma quase poética. “Impossible”, murmurou ela, mas sabia que nada era impossível naquele lugar onde a ciência e a magia dançavam juntas sob as estrelas.

Passaram horas conversando no silêncio dos olhares, aprendendo sobre as diferenças de seus mundos, descobrindo semelhanças impossíveis. Sarah queria tanto contar a ele sobre seu mundo, sobre as florestas urbanas que criara em apartamentos pequenos, sobre como falava com plantas em vasos, assim como ele falava com árvores centenárias. Cauã, por sua vez, desejava ensinar a ela os rituais sagrados de cura, onde as plantas eram parceiras, não apenas objetos de estudo, onde cada folha colhida requeria permissão e gratidão. Quando a primeira luz do amanhecer começou a filtrar através das copas, caminharam de volta ao acampamento de mãos dadas, sabendo que algo especial havia se consolidado entre eles.

Dr. Chen, o líder da expedição, começou a demonstrar preocupação com o envolvimento de Sarah com o jovem indígena. Para ele, aquilo era “perda de foco científico”, “romantização do primitivo”, “comprometimento da objetividade acadêmica”. “Sarah, você precisa manter distância profissional”, disse ele uma manhã. “Estamos aqui para estudar plantas, não para brincar de Pocahontas.” As palavras foram como bofetada, mas Sarah sabia que havia uma verdade maior que Chen não conseguia enxergar. Cauã não era apenas uma fonte de informação – era o caminho para uma compreensão diferente da natureza, uma que não separava o conhecimento do amor, a ciência da poesia.

Naquela noite, desabafou com Cauã sobre o conflito. Mesmo com as limitações da linguagem, ele compreendeu o dilema dela. “Homem-chefe não ver coração planta”, disse ele, se esforçando para ser compreendido com as poucas palavras em inglês que aprendera. “Ele ver…”, fez gestos como quem corta e disseca, “…morte. Cauã ver vida.” Sarah percebeu que ele havia resumido em poucas palavras a diferença fundamental entre duas maneiras de conhecer o mundo. Naquela noite, pela primeira vez, fizeram amor sob as estrelas. Foi um encontro de descobertas mútuas, onde cada toque era uma pergunta e cada gemido uma resposta. As mãos de Cauã exploraram o corpo de Sarah com a mesma reverência com que tocava plantas sagradas. E ela o recebeu como terra sedenta recebe a primeira chuva, após longa seca.

Seus corpos se moveram em um ritmo cadencial, como se estivessem dançando uma coreografia que seus corações já conheciam. Quando Sarah arqueou as costas sob as carícias dele, foi como se toda a floresta suspirasse junto. Quando Cauã sussurrou palavras de amor em sua língua nativa no ouvido dela, Sarah sentiu que compreendia perfeitamente, não com a mente, mas com cada fibra do seu ser. Depois, deitados lado a lado, ele desenhou constelações na pele nua dela, contando lendas sobre cada grupo de estrelas. Ela traçou cicatrizes pequenas no peito dele – marcas de espinhos, de galhos, da intimidade com a floresta – cada marca era uma história que ele contava em segredos.

“Você ficar?”, perguntou ele quando a lua estava no meio do céu. Sarah fechou os olhos, sabendo que aquela pergunta chegaria, temendo a resposta que teria que dar. “Não posso”, sussurrou, sentiu o corpo dele se tensionar ligeiramente. “Meu mundo… é diferente. Não sei se conseguiria viver aqui para sempre.” Cauã permaneceu em silêncio por longo tempo, depois virou-se para ela. “Eu não consegue viver mundo seu”, disse ele, simples e verdadeiro. “Mas esta noite… esta noite somos do mesmo mundo.” – disse ela. E voltaram a se amar, desta vez com uma intensidade doce, sabendo que cada toque poderia ser o último.

A expedição estava chegando ao fim e Sarah enfrentava a decisão mais difícil de sua vida. Na última noite antes da partida programada, ela e Cauã subiram novamente até a clareira da árvore ancestral. Ambos sabiam que era uma despedida, mas nenhum conseguia pronunciar a palavra. Fizeram amor uma última vez sob a proteção da árvore gigante, e foi diferente das outras vezes – havia um desespero silencioso, como se quisessem gravar na pele um do outro todas as sensações que iriam carregar como lembrança.

Sarah chorou silenciosamente enquanto Cauã a segurava contra o peito e ele cantou baixinho uma canção de ninar que sua mãe cantava, uma melodia que falava de sementes que voam longe, mas sempre carregam a essência de onde vieram. “Você vem comigo?”, perguntou Sarah, sabendo da impossibilidade do seu desejo se concretizar, mesmo antes de formular a pergunta. Cauã sorriu tristemente, com uma sabedoria que ia além de seus poucos anos. “Gavião não vive em gaiola”, disse ele. “Mesmo gaiola dourada.” Sarah compreendeu. “Então eu… fico?”, aventurou ela. “Você… flor… outro lugar… Não feliz meu terra”, respondeu ele, tocando gentilmente o rosto dela. “Cada planta precisa ter sua terra certa.”

A manhã da partida chegou cinzenta, como se o próprio céu estivesse enlutado. Sarah embalou seus equipamentos com movimentos mecânicos, o coração partido em fragmentos que cortavam por dentro. Cauã a acompanhou até a beira do rio, onde as canoas da expedição aguardavam. Antes de embarcar, Sarah tirou do pescoço um pequeno medalhão que pertencera à sua avó – um trevo de quatro folhas preservado em resina. “Isso é para te dar sorte”, disse ela, colocando-o no pescoço de Cauã. Ele, por sua vez, retirou do pulso uma pulseira de sementes sagradas, feita por sua mãe. “Esse… proteção”, respondeu, amarrando-a delicadamente no pulso dela.

Beijaram-se uma última vez, um beijo salgado de lágrimas que falava de amor e renúncia, de encontro e separação, de gratidão por terem se achado e dor por terem que se perder. Quando a canoa se afastou, Sarah acenou até que a figura de Cauã se tornou apenas um ponto na paisagem verde. Ele permaneceu na margem até que o som do motor desaparecesse completamente, engolido pelo abraço infinito da floresta.

De volta ao Canadá, Sarah tentou retomar sua vida acadêmica, mas algo havia mudado irreversivelmente dentro dela. As plantas em estufa pareciam prisioneiras, os laboratórios assépticos pareciam câmaras mortuárias. Ela havia provado de uma botânica viva, respirante, integrada à teia da existência. Começou a escrever artigos sobre medicina tradicional indígena, sempre com o cuidado de não revelar localizações que pudessem comprometer as tribos. Tornou-se uma ponte entre dois mundos de conhecimento, traduzindo sabedoria ancestral indígena em linguagem científica, sempre lembrando das lições de Cauã sobre o amor respeitoso às plantas.

Sarah nunca se casou, mas também nunca se sentiu sozinha, pois carregava dentro de si uma floresta inteira. Nas noites solitárias em Toronto, fechava os olhos e podia sentir o perfume da floresta amazônica, ouvir o sussurro das folhas, sentir a textura da pele de Cauã contra a sua. A pulseira de sementes nunca saiu de seu pulso, e às vezes, tocando-a distraidamente durante reuniões acadêmicas, podia jurar que sentia o calor das mãos dele quando a amarrara ali.

Cauã retornou à sua aldeia transformado, trazendo consigo algo novo: a certeza de que o mundo era muito maior e mais complexo do que imaginara, mas também a descoberta de que o amor verdadeiro não conhece fronteiras geográficas ou culturais. Seguindo a tradição da família, tornou-se um pajé respeitado, como o avô, mas com uma peculiaridade: mesclava conhecimentos tradicionais com insights que havia adquirido através do olhar científico de Sarah. Nunca esqueceu a mulher de olhos verdes que havia aparecido em seus sonhos. O medalhão dela pendia em seu peito como um amuleto, e nas noites de lua cheia, quando subia até a clareira de uma árvore ancestral parecida com aquela em que se amaram pela última vez, podia jurar que sentia o perfume suave do cabelo dourado dela no vento.

Vinte e cinco anos se passaram, como um longo suspiro de floresta. Sarah, agora uma botânica renomada e ativista ambiental respeitada, retornou ao Brasil para um grande congresso sobre biodiversidade amazônica. Desta vez, vinha como palestrante principal, convidada a falar sobre a importância dos conhecimentos tradicionais na conservação. Durante o evento, conheceu uma jovem pesquisadora brasileira que trabalhava com mapeamento de comunidades indígenas. Mariana mencionou casualmente que havia uma tribo na região onde Sarah fizera sua primeira expedição, conhecida por ter um pajé excepcionalmente sábio que combinava práticas ancestrais com inovações científicas surpreendentes.

“Como é o nome dele?”, perguntou Sarah, o coração acelerado sem saber por quê. “Cauã”, respondeu Mariana. “Um homem fascinante. Dizem que aprendeu alguns conhecimentos com cientistas estrangeiros, há muitos anos.” Sarah sentiu o mundo girar, como se vinte e cinco anos se dobrassem sobre si mesmos em um único instante. Pediu à jovem pesquisadora para incluí-la na próxima visita à aldeia.

Três meses depois, estava novamente em uma canoa subindo o rio, mas desta vez como convidada oficial para um intercâmbio cultural. Seus cabelos agora tinham fios prateados, seu rosto marcas do tempo, mas seus olhos verdes continuavam brilhando com a mesma curiosidade de sempre. Quando a canoa atracou na margem da aldeia, um grupo de crianças correu para receber os visitantes. Atrás delas, caminhando com a dignidade serena dos sábios, vinha um homem que Sarah reconheceu imediatamente, apesar dos anos.

Cauã havia amadurecido magnificamente. Os músculos jovens deram lugar a uma compleição mais sólida, os cabelos estavam cortados no estilo tradicional dos pajés, mas os olhos continuavam tendo aquela profundidade que ela se recordava. Quando ele a viu, parou por um instante, como se estivesse vendo uma visão. Depois sorriu – o mesmo sorriso que havia aquecido o coração dela vinte e cinco anos antes. “Flor-canadense voltou”, disse ele, aproximando-se, e Sarah percebeu que agora ele falava inglês com mais fluência. “Gavião-pajé ficou ainda mais sábio”, respondeu ela, e ambos riram, redescobrindo a facilidade antiga de estarem juntos.

Durante os dias que se seguiram, Sarah participou de rituais, conheceu as inovações que Cauã havia implementado na aldeia, viu como ele havia se tornado um líder respeitado que conseguia proteger a tradição ao mesmo tempo em que a adaptava aos desafios modernos. Ele, por sua vez, ouviu fascinado sobre o trabalho dela, sobre como havia dedicado a vida a construir caminhos ligando sabedorias diferentes, sobre como nunca havia esquecido as lições aprendidas naquela primeira expedição.

Uma noite, ele a levou novamente até a clareira da árvore ancestral. A gigante continuava lá, ainda mais imponente do que antes. Seus galhos agora abrigavam ninhos de dezenas de espécies de pássaros, suas raízes expostas formavam bancos naturais cobertos de musgo. “Ela cresceu”, observou Sarah, tocando o tronco familiar. “Como nós”, respondeu Cauã. Sentaram-se lado a lado, na base da árvore, ouvindo a sinfonia noturna da floresta. Havia uma paz profunda entre eles, diferente da paixão impetuosa de vinte e cinco anos antes, mas não menos intensa.

“Você se casou?”, perguntou Sarah. “Não. A floresta me disse que meu coração já tinha dona”, respondeu ele, sorrindo. “E você?” “A ciência me disse a mesma coisa”, ela sorriu de volta. Quando se beijaram novamente, sob a mesma árvore onde haviam se amado pela primeira vez, foi como se o tempo fosse apenas uma ilusão. O beijo tinha a maturidade dos anos vividos, mas também a familiaridade de lábios que se reconheciam através da distância e do tempo.

Desta vez, quando fizeram amor, foi com a sabedoria de quem conhece o valor de cada toque, de cada suspiro, de cada momento de intimidade. Seus corpos haviam mudado – ela tinha cicatrizes pequenas de acidentes de laboratório, ele tinha marcas de rituais sagrados – mas encaixavam-se ainda melhor, como se os anos os tivessem moldado especificamente um para o outro. Sarah descobriu que ainda sabia exatamente onde tocar para fazer Cauã gemer seu nome, e ele ainda conhecia cada ponto sensível no corpo dela que a fazia estremecer.

“Desta vez você fica?”, perguntou ele depois, quando estavam deitados nus sob as estrelas, cobertos apenas pelo vento da floresta. “Desta vez eu posso ficar”, respondeu ela, e ele soube que era verdade. Não era mais a jovem cientista inexperiente de vinte e cinco anos antes – era uma mulher madura que havia construído sua carreira, provado seu valor, e agora podia escolher onde queria viver o resto de sua vida.

Passaram a semana seguinte planejando algo revolucionário: um centro de pesquisa que ficaria na fronteira entre a aldeia e o mundo exterior, onde conhecimento tradicional e ciência moderna poderiam conversar de igual para igual. Sarah usaria seus contatos internacionais para conseguir financiamento. Cauã garantiria o apoio da comunidade indígena. Juntos, criariam um modelo novo de pesquisa, baseado no respeito mútuo e na troca desinteressada.

“Será nossa filha”, disse Cauã, enquanto desenhavam plantas na areia da margem do rio. “Nossa contribuição para o mundo”, concordou Sarah. Na última noite, antes da partida que desta vez seria temporária, fizeram amor com a intensidade de quem sabe que desta vez não seria uma despedida, mas o início de algo novo. Era o amor maduro, profundo, de almas que se reconheceram através do tempo e da distância.

Dois anos depois, o Centro de Etnobotânica Aplicada foi inaugurado numa festa que reuniu cientistas internacionais, lideranças indígenas, autoridades brasileiras e ativistas ambientais do mundo inteiro. Sarah havia se mudado definitivamente para o Brasil, morando numa casa construída segundo técnicas tradicionais, mas equipada com laboratórios de última geração. Era como se ela finalmente tivesse encontrado o lugar onde a científica e o amor – podiam coexistir.

Sarah e Cauã se casaram numa cerimônia que misturou tradições indígenas com elementos que ela trouxera de sua cultura. O pajé mais antigo da tribo conduziu o ritual em língua nativa, enquanto um amigo canadense de Sarah leu poemas em inglês. A árvore ancestral serviu de altar natural. Na noite de núpcias, fizeram amor como marido e mulher pela primeira vez, e foi como se todos os encontros anteriores tivessem sido apenas ensaios para aquela consumação perfeita.

A árvore ancestral continua crescendo, lenta e majestosa, abrigando ninhos de pássaros migratórios e pássaros nativos. Suas raízes se aprofundam, seus galhos se estendem, seus frutos alimentam uma diversidade imensa de seres. Como o amor verdadeiro, ela não pertence a ninguém, mas nutre a todos. E assim, na grande floresta amazônica, onde cada folha é uma palavra no livro infinito da vida, a história de Sarah e Cauã continua sendo escrita. Não em páginas de papel, mas na correnteza dos rios, no perfume das flores, no canto dos pássaros, no crescimento das árvores.

Porque algumas histórias não terminam. Elas apenas se transformam e evoluem, como sementes que se tornam árvores, como árvores que se tornam floresta, como florestas que se tornam o próprio coração pulsante do mundo. O amor verdadeiro não se mede pela duração, mas sim por sua profundidade.

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