O Alfabeto das Sombras

Na Cidade-Monstro, aquela que devorava sonhos e cuspia desilusões, vivia Jeremias. Um menino de pele escura como a noite sem lua e olhos tão grandes que pareciam querer engolir o mundo. Tinha onze anos, mas carregava nos ombros o peso de quem já vivera muitas vidas.

A favela onde morava chamavam de Morro das Andorinhas, mas ali nenhum pássaro fazia ninho. As andorinhas, diziam os velhos, tinham partido quando o primeiro tiro rasgou o céu daquele lugar. Agora só restavam os ecos e as balas perdidas que, às vezes, encontravam destinos que nunca as procuraram.

A casa de Jeremias era um casulo de tijolos expostos, tão pequena que os sonhos precisavam ser dobrados para caber dentro. Ali vivia com Dolores, sua mãe, uma mulher que vendia o corpo para comprar o pão, mas que guardava a alma num canto tão profundo que nem ela mesma sabia mais onde encontrá-la. Do pai, Jeremias conhecia apenas o vazio. Um vazio com forma de homem que nunca se materializou.

“Mãe, quem é meu pai?”, perguntava Jeremias nas noites em que Dolores chegava menos cansada.

“Seu pai é uma ausência com nome de homem”, respondia ela, enquanto desviava o olhar para a janela, como se lá fora estivesse a explicação que faltava dentro.

A escola para Jeremias era um oásis no deserto da sua existência. Ali, entre paredes descascadas e carteiras quebradas, ele descobriu que as palavras podiam ser pontes para outros mundos. Foi a professora Carmem quem primeiro notou aquela fome nos olhos do menino. Uma fome que nenhum prato de comida poderia saciar.

“Jeremias tem sede de letras”, disse ela certa vez para a diretora. “Ele bebe palavras com sofreguidão, como se estivesse morrendo de sede.”

E foi assim que começou sua paixão por livros. Primeiro, foram os livros didáticos, já surrados pelo uso de tantas mãos. Depois, as revistas velhas que a professora Carmem trazia de casa. Em cada página, Jeremias descobria universos que a Cidade-Monstro não conseguia devorar.

Aos domingos, seu ritual sagrado era visitar a banca de seu Joaquim. Uma pequena ilha de papel e tinta perdida no mar cinzento da cidade. Ali, enquanto fingia apenas olhar as capas, Jeremias devorava páginas inteiras, decorando palavras, roubando histórias que nunca poderia comprar.

“Menino, você vai gastar os livros só de olhar”, brincava seu Joaquim, que fingia não ver quando Jeremias se demorava mais do que devia em alguma revista.

Mas naquela tarde de agosto, quando o céu parecia uma ferida aberta sobre a cidade, tudo mudou. Um homem entrou na banca, gritou com seu Joaquim, e na confusão, revistas caíram. Quando a polícia chegou, encontrou Jeremias com uma revista na mão e o medo nos olhos.

“É esse pivete que estava roubando”, disse o homem, apontando para o menino que tremia como folha em dia de ventania.

“Eu só estava lendo”, sussurrou Jeremias, mas sua voz era pequena demais para ser ouvida no meio de tantas acusações.

No dia seguinte, os jornais não falaram do menino que amava ler. Falaram do “menor infrator” que foi levado para o Centro de Recuperação Novo Amanhecer. A Cidade-Monstro tinha muitos nomes bonitos para esconder suas feiuras.

O Centro ficava no extremo oposto da cidade, onde o asfalto se desfazia em terra batida e o progresso era apenas um rumor distante. Um prédio cinzento cercado por muros altos onde as esperanças batiam e voltavam como ecos sem resposta.

Foi ali, naquele lugar onde o tempo parecia ter esquecido de passar, que Jeremias conheceu seu Agenor. Um senhor de setenta anos, mãos calejadas e sorriso manso, que varria os corredores com a mesma dignidade de quem semeia um campo.

“Você gosta de livros, menino?”, perguntou seu Agenor no terceiro dia, quando percebeu que Jeremias observava com olhos famintos a pequena estante no canto da sala dos funcionários.

“Gosto, senhor. Mas aqui não deixam a gente ler nada.”

Seu Agenor sorriu. Um sorriso que parecia iluminar todo aquele lugar sombrio.

“Conhece Machado de Assis, menino?”

Jeremias negou com a cabeça.

“E Guimarães Rosa? E Jorge Amado?”

Mais negativas.

“Então você ainda não conhece o Brasil que mora nos livros.”

Naquela noite, debaixo do travesseiro de Jeremias, apareceu um exemplar surrado de “Dom Casmurro”. A capa já não tinha cor e algumas páginas estavam coladas com fita adesiva, mas para Jeremias, era o tesouro mais precioso que já havia possuído.

“Não deixe que ninguém veja”, recomendou seu Agenor no dia seguinte. “Os livros são como pássaros: precisam de liberdade, mas também de quem cuide deles.”

E assim começou uma amizade tecida com letras e silêncios. Cada semana, um livro novo aparecia debaixo do travesseiro de Jeremias. E cada semana, seu Agenor perguntava sobre as histórias, sobre as palavras novas, sobre os mundos que se abriam.

“O senhor tem tantos livros assim?”, perguntou Jeremias certa tarde, enquanto ajudava a varrer o pátio.

“Tenho uma floresta inteira em casa”, respondeu seu Agenor. “Cada livro é uma árvore que plantei ao longo da vida.”

Seu Agenor não era apenas um homem que varria o chão. Antes, fora professor em uma pequena cidade do interior. Ensinara literatura durante trinta anos, até que a vida, essa escritora caprichosa, mudou o rumo de sua história.

“Minha esposa adoeceu, precisei vir para a capital buscar tratamento. O dinheiro acabou, o emprego de professor também. Mas os livros… ah, os livros ninguém pôde tirar de mim.”

A biblioteca de seu Agenor ficava em um quarto minúsculo de um cortiço na zona leste. Ali, entre paredes úmidas e um teto que chorava em dias de chuva, centenas de livros se amontoavam em estantes improvisadas, protegidos por sacos plásticos e pelo amor incondicional de seu dono.

“Quando você sair daqui, vou te mostrar minha floresta”, prometeu.

Durante os oito meses em que Jeremias permaneceu no Centro, os livros foram sua salvação. Nas páginas de Machado, aprendeu sobre a complexidade humana. Com Jorge Amado, viajou pela Bahia e sentiu o cheiro do dendê. Guimarães Rosa lhe mostrou um sertão que era o mundo inteiro.

E todas as noites, antes de dormir, Jeremias escrevia em um caderno velho que seu Agenor lhe dera. Escrevia com a fome de quem descobre que pode criar mundos com as mesmas palavras que aprendera a ler.

“As palavras são sementes, menino”, dizia seu Agenor. “Você pode plantar desertos ou florestas com elas.”

Quando Jeremias finalmente deixou o Centro, não voltou para o Morro das Andorinhas. Dolores havia desaparecido, levada pela vida ou pela morte – ninguém sabia ao certo. A Cidade-Monstro continuava devorando os que não conseguiam escapar de suas mandíbulas.

Seu Agenor, que já havia se aposentado, acolheu Jeremias em seu pequeno apartamento. “Só até você terminar os estudos”, disse. Mas ambos sabiam que ali nascia uma família que o sangue não havia conseguido criar.

Na escola nova, Jeremias era um aluno quieto, de olhos atentos e cadernos impecáveis. Enquanto os colegas falavam de futebol e videogames, ele pensava nos personagens dos livros que lia, em suas jornadas, em suas dores e alegrias tão parecidas com as suas.

“Esse menino tem o dom da palavra”, comentou a professora de português depois de ler uma redação de Jeremias. “Ele escreve tão naturalmente como o gato que sobe em árvores.”

Aos dezesseis anos, Jeremias começou a trabalhar como entregador de uma livraria pequena no centro da cidade. O salário era pouco, mas poder tocar em livros novos, sentir o cheiro do papel recém-impresso, era uma alegria que nenhum dinheiro poderia comprar.

“Não é coincidência”, dizia seu Agenor, agora com os cabelos completamente brancos e uma tosse que não passava nem nos dias de calor. “A vida tem seus caminhos tortos, mas chega onde precisa chegar.”

Com esforço, Jeremias conseguiu uma bolsa na faculdade de Letras. Nas manhãs estudava, nas tardes trabalhava, e nas noites escrevia histórias que nasciam de suas memórias e sonhos. Histórias sobre meninos invisíveis, sobre mães perdidas, sobre velhos sábios que varrem o chão e plantam florestas em quartos minúsculos.

Seu primeiro conto foi publicado em uma revista universitária quando tinha vinte anos. Chamava-se “O Varredor de Horizontes” e contava a história de um velho que ensinava crianças a enxergar além dos muros.

“É sobre o senhor”, disse Jeremias, entregando a revista para seu Agenor.

O velho leu em silêncio, com lágrimas que desciam devagar por seu rosto enrugado.

“Não, meu filho. É sobre nós dois.”

Quando seu Agenor morreu, três anos depois, deixou para Jeremias sua floresta de livros e um bilhete amarelado pelo tempo:

“As histórias não morrem com quem as conta. Elas apenas encontram novas vozes. Seja essa voz, meu filho.”

Jeremias honrou essa promessa. Formou-se com distinção, fez mestrado, e começou a dar aulas em um cursinho pré-vestibular para jovens da periferia. Nas horas vagas, continuava escrevendo suas histórias, que aos poucos começaram a ganhar leitores fiéis.

Seu primeiro livro, “Alfabeto das Sombras”, foi publicado quando tinha vinte e oito anos. Uma coletânea de contos sobre a vida nas margens da Cidade-Monstro. Críticos elogiaram a linguagem poética, o olhar sensível, a capacidade de transformar dor em beleza.

“É como se cada palavra fosse uma pequena luz acesa contra a escuridão”, escreveu um resenhista.

O sucesso veio devagar, como uma maré que sobe sem alarde. Primeiro, foi convidado para dar palestras em escolas. Depois, vieram prêmios literários, traduções, convites para universidades estrangeiras.

Aos trinta e cinco anos, Jeremias fundou a editora “Andorinha”, especializada em descobrir novos talentos nas periferias do Brasil. Uma pequena casa editorial que nasceu grande em propósitos.

“Quero ser ponte, não muro”, dizia ele nas entrevistas. “Quero que todas as vozes possam contar suas histórias.”

A primeira sede da editora foi inaugurada onde antes ficava a banca de seu Joaquim, fechada há anos. No lugar dos jornais sensacionalistas, agora havia livros de autores que, como Jeremias, haviam nascido invisíveis para o mundo.

E no coração da editora, acessível a qualquer pessoa que quisesse entrar, ficava a Biblioteca Agenor. Um espaço amplo, iluminado por grandes janelas, onde crianças e adultos podiam ler livremente, sem precisar esconder livros debaixo de travesseiros.

Na parede principal, emoldurado como a obra de arte mais preciosa, estava o bilhete amarelado de seu Agenor. E abaixo dele, uma frase que Jeremias havia acrescentado:

“As palavras são sementes. Plante as suas com amor e verá florescer mundos inteiros.”

Em noites de chuva, quando a Cidade-Monstro parecia mais sombria, Jeremias ainda visitava o Morro das Andorinhas. Levava livros, lápis, cadernos. E ali, entre becos estreitos e sonhos apertados, ensinava outras crianças a construir pontes com palavras.

“Onde você aprendeu a ler assim?”, perguntou certa vez um menino de olhos grandes, muito parecidos com os que Jeremias tinha na infância.

Jeremias sorriu, olhando para o céu onde, diziam agora, as andorinhas estavam voltando a fazer ninhos.

“Aprendi que as letras são pássaros que podem nos levar para longe, mesmo quando os pés estão presos ao chão.”

E continuou lendo em voz alta, plantando sementes invisíveis que um dia, ele sabia, floresceriam em lugares que ele jamais imaginara alcançar.

Deixe um Comentário

Livro em Destaque

Categoria de Livros

Boletim Informativo

Não perca nenhuma história!