Entre Telas e Tradições

A praça de São Vicente do Cerrado despertava sob o sol matinal, como uma aquarela que se desenha devagar no papel. Clara arrumou suas telas contra o tronco rugoso do ipê-amarelo, cada quadro uma janela para mundos que só ela conseguia enxergar. Suas mãos, manchadas de tinta azul-cobalto, tremulavam ligeiramente – não de frio, mas da ansiedade doce de quem expõe a alma ao julgamento dos outros.

Gabriel caminhava pela feira com a pressa controlada de quem carrega o peso de horários rigorosos. O terno cinza-chumbo contrastava com o colorido das barracas, como se ele fosse uma nota grave em meio a uma sinfonia alegre. Parou diante da banca de frutas, escolhendo mangas com a mesma precisão com que selecionava jurisprudências.

Foi então que o vento – esse mesmo vento que carrega sementes e esperanças – decidiu reescrever o destino. Uma rajada mais forte derrubou uma das telas de Clara bem no caminho de Gabriel. O quadro voou como um pássaro ferido e pousou aos pés do advogado, que se abaixou instintivamente para socorrê-lo.

“Desculpe, eu…” Gabriel ergueu a tela com cuidado, como quem segura um recém-nascido. Seus olhos se perderam na explosão de cores que retratava um campo de girassóis sob tempestade. “É… é impressionante.”

Clara correu até ele, o coração batendo descompassado. “Não se preocupe, as telas são mais resistentes do que parecem.” Pegou o quadro das mãos dele, seus dedos se tocando por um instante fugaz. “Assim como as pessoas, às vezes.”

“É sua?” Gabriel não conseguia desviar o olhar da pintura. “Nunca vi nada assim por aqui.”

“Pinto o que sinto, não o que vejo.” Clara sorriu, guardando uma mecha rebelde atrás da orelha. “Embora, para ser honesta, às vezes sinto demais.”

Gabriel estudou a obra mais atentamente. Os girassóis se curvavam sob a força do vento, mas suas raízes permaneciam firmes na terra. “É bonito, mas…” hesitou, ajustando a gravata num gesto nervoso. “Até a arte precisa de regras, não acha? Proporção, perspectiva…”

Os olhos de Clara brilharam com uma centelha de desafio. “Às vezes, as regras só atrapalham a beleza do que é livre.”

Um silêncio se estendeu entre eles, carregado de significados não ditos. Gabriel sentiu algo se mover dentro do peito – uma sensação estranha, como se uma porta há muito trancada estivesse rangendo para se abrir.

“Gabriel Mendonça.” Estendeu a mão, formal.

“Clara Santana.” Ela apertou a mão dele, deixando uma pequena marca de tinta azul na palma do advogado. “Agora você vai carregar um pedacinho da minha arte.”

Nos dias que se seguiram, Gabriel começou a fazer desvios propositais pela praça. Sempre encontrava uma desculpa – comprar frutas, verificar um processo no fórum próximo, tomar um café no bar do Zé. Clara notou e, com a perspicácia de quem observa o mundo através de pincéis, percebeu que ele aparecia nos mesmos horários, sempre parando para conversar sobre suas pinturas.

“Você não é daqui, é?” perguntou Gabriel numa tarde de outubro, quando a luz dourada filtrava através das folhas do ipê.

“Nasci aqui, mas meu coração sempre esteve em outros lugares.” Clara misturava cores na paleta, criando tons que não existiam na natureza. “E você? Sempre quis ser advogado?”

“Meu pai era advogado. Meu avô também. É como se fosse um destino já escrito.” Gabriel se sentou na grama ao lado do cavalete dela. “Às vezes me pergunto como seria ter escolhido meu próprio caminho.”

“Nunca é tarde para reescrever sua história.” Clara parou de pintar e o olhou diretamente. “Somos os autores de nossas próprias vidas.”

“Fácil falar quando você não tem responsabilidades.” A voz de Gabriel saiu mais áspera do que pretendia. “Tenho uma família inteira que depende de mim. O escritório, os funcionários, as tradições.”

“E você? Quem depende do Gabriel pessoa, não do Gabriel advogado?”

A pergunta ficou suspensa no ar como poeira dourada. Gabriel não soube responder.

Os encontros se multiplicaram. Gabriel descobriu que Clara pintava não apenas com pincéis, mas com os dedos, com espátulas, às vezes com galhos que catava no chão. Ela lhe mostrou como as cores podiam expressar sentimentos que as palavras não alcançavam. Em troca, ele falava sobre justiça, sobre o peso de carregar o sobrenome de uma família respeitada, sobre noites em claro estudando códigos e jurisprudências.

“Você pinta como se estivesse dançando,” observou Gabriel numa tarde, hipnotizado pelo movimento fluido dos braços dela.

“E você fala como se estivesse construindo uma fortaleza,” ela riu. “Sempre tão certinho, tão… contido.”

“Alguém precisa manter as coisas em ordem.”

“Mas a vida não é uma planilha, Gabriel. É uma tela em branco esperando ser preenchida com cores improváveis.”

Foi numa noite de lua cheia, quando Clara o levou ao seu pequeno ateliê nos fundos da casa onde morava, que algo mudou definitivamente entre eles.

As paredes estavam cobertas de quadros – paisagens inventadas, retratos de sentimentos, abstrações que pareciam pulsar com vida própria.

“Meu Deus,” Gabriel murmurou, girando lentamente no centro do cômodo. “É como estar dentro de um sonho.”

“É aqui que eu sou mais eu mesma.” Clara acendeu algumas velas, a luz tremulante dançando sobre as telas. “Aqui não existem regras, apenas possibilidades.”

Gabriel se aproximou dela, o cheiro de tinta e terebintina misturado ao perfume suave da pele feminina. “Clara, eu…”

“Não diga nada,” ela sussurrou, colocando o dedo sobre os lábios dele. “Às vezes as palavras estragam o momento.”

O beijo aconteceu como uma pincelada espontânea – natural, inevitável, carregado de toda a tensão que vinha se acumulando entre eles. Quando se separaram, Gabriel sentiu como se tivesse acabado de acordar de um sono profundo.

“Eu nunca senti nada assim,” confessou, a voz rouca.

“Porque você nunca se permitiu sentir,” Clara acariciou o rosto dele. “Sempre tão preocupado em fazer o que é certo que esqueceu de perguntar o que é verdadeiro.”

Começaram a se encontrar em segredo. Gabriel mentia para a família, inventava compromissos profissionais para poder passar horas no ateliê de Clara. Ela o ensinou a ver o mundo com outros olhos, a perceber a poesia escondida nas pequenas coisas. Ele, por sua vez, mostrou-lhe que existem formas de rebeldia mais sutis que a confrontação direta.

“Você está diferente,” comentou Clara numa tarde, notando uma tensão nova nos ombros dele.

“Diferente como?”

“Mais distante. Como se estivesse carregando um peso que não quer dividir comigo.”

Gabriel desviou o olhar. Há semanas vinha sendo pressionado pela família para formalizar o noivado com Isabela Castanheira, filha do sócio mais influente do escritório. Era uma união que fazia sentido nos papéis, que fortaleceria os negócios e manteria as tradições. Mas como explicar isso para Clara sem destruir tudo o que haviam construído?

“É apenas trabalho,” mentiu. “Muitos processos em andamento.”

Clara o estudou com aquele olhar penetrante que parecia enxergar através das máscaras. “Gabriel, se há algo que você precisa me contar…”

“Não há nada.” Ele a puxou para um abraço, enterrando o rosto nos cabelos dela. “Você é a única coisa certa na minha vida.”

Mas o tempo, esse algoz implacável de todos os amores secretos, não permitiu que a mentira durasse para sempre. Clara soube através do jornal local – uma pequena nota social anunciando o noivado de Gabriel Mendonça com a distinta senhorita Isabela Castanheira. A foto os mostrava sorrindo, ele de terno escuro, ela de vestido branco, ambos com a pose artificial de quem representa um papel.

As mãos de Clara tremeram ao segurar o jornal. Sentiu como se todas as suas telas tivessem sido rasgadas de uma vez, como se alguém tivesse derramado tinta preta sobre todas as cores que havia descoberto ao lado dele.

Quando Gabriel apareceu no ateliê naquela noite, como sempre fazia, encontrou Clara pintando furiosamente. A tela mostrava uma tempestade violenta, com raios negros cortando um céu vermelho-sangue.

“Clara, eu posso explicar…”

“Explicar?” Ela se virou, o pincel ainda pingando tinta escura. “Explicar o quê? Que você brincou comigo enquanto planejava sua vida perfeita com outra?”

“Não foi assim…”

“Não?” Clara jogou o pincel no chão, deixando uma mancha escura no assoalho. “Então me diga como foi, Gabriel. Me diga como você consegue falar de amor enquanto constrói uma mentira.”

“Você não entende a pressão que sofro!” Gabriel passou as mãos pelos cabelos, desarrumando o penteado impecável. “Minha família, o escritório, as expectativas…”

“Você é como todos os outros,” a voz de Clara saiu fria como metal. “Fala de coragem, mas vive preso a uma gaiola. E o pior é que você mesmo forjou as chaves.”

“Clara, por favor…”

“Por favor, o quê?” Lágrimas corriam pelo rosto dela, misturando-se com pequenas gotas de tinta. “Por favor, entenda que você é um covarde? Que prefere uma vida de conveniências a lutar por algo verdadeiro?”

Gabriel tentou se aproximar, mas ela recuou como um animal ferido.

“Eu te amo,” ele sussurrou.

“Amor não é uma palavra, Gabriel. É uma escolha. E você já fez a sua.”

Clara saiu do ateliê, deixando Gabriel sozinho entre as telas que agora pareciam acusá-lo com suas cores vibrantes. Ele ficou ali por horas, sentado no chão, olhando para o quadro inacabado da tempestade e sentindo como se fosse ele o homem perdido na escuridão.

Três dias depois, Gabriel bateu à porta da casa de sua avó, Dona Teresa. A mulher de oitenta e dois anos ainda mantinha a lucidez afiada de quem havia visto muitas primaveras florescerem e murcharem.

“Vovó, preciso de um conselho.”

Dona Teresa serviu café numa xícara de porcelana antiga, o mesmo ritual que repetia há décadas. “Café sempre ajuda a clarear os pensamentos, meu neto.”

Gabriel contou tudo – sobre Clara, sobre Isabela, sobre a pressão da família, sobre o medo de decepcionar todos à sua volta.

“Sabe,” Dona Teresa mexeu o açúcar lentamente, “quando eu era nova, também tive que escolher entre o que meu coração queria e o que a família esperava.”

“E o que você fez?”

“Escolhi a conveniência. Casei com seu avô porque era o que todos esperavam.” Ela suspirou, olhando pela janela para o jardim que cultivava com tanto carinho. “Ele era um bom homem, me deu filhos maravilhosos, uma vida estável. Mas nunca houve fogo, nunca houve paixão.”

“Vovó…”

“Deixe-me terminar.” A voz dela ficou mais firme. “Uma vida de conveniência é uma vida vazia, Gabriel. Você pode ter segurança, respeito, posição social, mas vai acordar todos os dias sentindo que algo está faltando.”

Gabriel baixou a cabeça. “Mas e se eu escolher Clara e perder todo o resto?”

“E se você escolher Isabela e perder a si mesmo?” Dona Teresa cobriu a mão do neto com a sua, enrugada mas ainda forte. “Escolha o que faz seu coração vibrar, meu neto. A vida é muito curta para ser vivida pela metade.”

Naquela noite, Gabriel enfrentou a família reunida na sala de jantar da casa grande. Seu pai, sua mãe, seu irmão mais novo, todos sentados ao redor da mesa de mogno que havia pertencido a gerações de Mendonças.

“Preciso falar com vocês sobre o noivado.”

“Espero que seja para dizer que finalmente marcaram a data,” disse sua mãe, sorrindo. “Isabela é uma moça encantadora.”

“Na verdade,” Gabriel respirou fundo, sentindo o peso de séculos de tradição pressionando seus ombros, “vim comunicar que vou romper o noivado.”
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Seu pai largou o garfo no prato com um ruído metálico.

“Gabriel, espero que isso seja uma brincadeira de mau gosto.”

“Não amo Isabela, pai. Nunca amei.”

“Amor?” Seu pai se levantou, a voz crescendo em volume. “Você acha que casei com sua mãe por amor? Que seu avô escolheu sua avó porque bateu o coração? Casamento é parceria, é estratégia, é construção de futuro!”

“Para vocês, talvez. Mas não para mim.”

“E o escritório? Nossa família? A tradição que construímos ao longo de gerações?”

Gabriel se levantou também, sentindo-se mais alto do que nunca havia se sentido. “A tradição que quero deixar para meus filhos é a de seguir o coração. De escolher a autenticidade ao invés da aparência.”

“Há uma mulher por trás disso,” sua mãe murmurou, os olhos brilhando de lágrimas. “Uma dessas artistas malucas que você anda frequentando.”

“Há uma mulher que me ensinou quem eu realmente sou,” Gabriel confirmou. “E por isso vou ser eternamente grato a ela, mesmo que ela nunca me perdoe.”

Deixou a casa sob o olhar ferido da família, mas pela primeira vez em anos, sentiu-se verdadeiramente livre.

A praça estava silenciosa quando Gabriel chegou. Clara não estava lá – há uma semana que não aparecia para expor suas telas. Ele correu até a casa dela, o coração batendo forte no peito.

Bateu na porta por longos minutos antes que ela atendesse. Quando finalmente abriu, Gabriel viu que ela havia chorado – os olhos estavam inchados, o rosto pálido.

“O que você quer?” A voz saiu cansada.

“Rompi o noivado.”

Clara não demonstrou surpresa nem alegria. Apenas se afastou da porta, deixando-o entrar.

“Parabéns. Descobriu que tem coragem.”

“Clara, eu sei que não mereço seu perdão…”

“Não se trata de perdão, Gabriel.” Ela se sentou numa poltrona velha, as mãos cruzadas no colo. “Se trata de confiança. Como posso acreditar que você não vai fugir de novo na primeira dificuldade?”

Gabriel se ajoelhou diante dela, pegando suas mãos entre as suas. “Porque agora eu entendo que uma vida sem você não é vida. É apenas existência.”
“Palavras bonitas.”

“Então me deixe provar com ações.” Os olhos dele brilhavam com uma determinação que Clara nunca havia visto antes. “Me deixe pintar nossa história com você, uma pincelada de cada vez.”

Clara o estudou por longos segundos, como se tentasse decifrar um quadro complexo. Depois, lentamente, ergueu a mão e tocou o rosto dele.
“Você tem certeza de que quer isso? Uma vida sem garantias, sem aprovação da família, sem o caminho já traçado?”

“Tenho certeza de que quero uma vida verdadeira. E essa vida só existe ao seu lado.”

O beijo que trocaram teve o sabor de recomeço, de promessas feitas não apenas com palavras, mas com a entrega completa de duas almas que finalmente se permitiam ser livres.

Meses depois, quando Gabriel já havia montado seu próprio escritório e Clara preparava sua primeira exposição individual, eles caminhavam pela mesma praça onde tudo começou. O ipê-amarelo estava florido novamente, suas pétalas douradas dançando no vento como pequenos sóis.

“Sabe,” disse Clara, entrelaçando os dedos nos dele, “acho que você estava certo naquele primeiro dia.”

“Sobre o quê?”

“Sobre as regras na arte.” Ela sorriu, parando diante do lugar exato onde ele havia segurado sua tela derrubada pelo vento. “Descobri que às vezes precisamos de algumas regras para dar estrutura à liberdade.”

Gabriel a puxou para mais perto, respirando o perfume que agora conhecia de cor. “E eu descobri que algumas regras precisam ser quebradas para que a beleza possa florescer.”

O vento soprou novamente, como naquele primeiro dia, mas desta vez não derrubou nada. Apenas carregou consigo o perfume das flores do ipê e a promessa de todas as estações que ainda viriam, com suas tempestades e suas calmarias, suas cores vibrantes e suas sombras necessárias.

Em São Vicente do Cerrado, onde as tradições se enraizam profundamente na terra vermelha, duas almas aprenderam que o verdadeiro amor não segue regras nem quebra todas elas – ele simplesmente existe, como a arte, como a vida, como tudo o que é belo neste mundo.

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