Quando o Chamado Chega

A verdadeira mediunidade é descobrir que somos instrumentos nas mãos do amor. E o amor, esse músico divino, sempre sabe a melodia certa para cada momento, para cada alma, para cada reencontro com nossa verdade maior.

Palavras de um Preto Velho poeta

Marina carregava o nome do mar, mas vivia afogada em terra seca. Aos trinta e cinco anos, contadora de números que não somavam sentido, habitava um apartamento onde o silêncio pesava mais que os móveis. Era mulher de rotinas medidas, café sempre morno, passos sempre contabilizados. Até que, um dia, as vozes começaram a questioná-la.

Primeiro foram os sonhos. Não sonhos comuns, desses que a manhã dissolve como açúcar n’água. Eram sonhos que chegavam com cheiro de incenso e gosto de culpa. Via-se em roupas de outra época, mãos que eram suas mas não lhe pertenciam, fechando portas a quem pedia socorro. Acordava com o peito apertado, como se mil pedidos de perdão quisessem sair pela garganta.

“É só stress”, diagnosticava-se ao espelho, esse mentiroso profissional que toda manhã lhe devolvia um rosto cada vez mais perturbado.

Os fenômenos foram crescendo, como mato que ninguém rega, mas insiste em brotar. O copo d’água que deslizava sozinho pela mesa. O sussurro que vinha de lugar nenhum e dizia nomes que ela não conhecia. As sombras que dançavam no canto do olho, sempre fugidias quando tentava focá-las.

Uma tarde de quinta-feira – sempre às quintas as coisas importantes aconteciam em sua vida – Marina chegou em casa e encontrou todos os porta-retPalavras de um Preto Velho poeta para a parede. Morava sozinha. As janelas estavam fechadas. Não havia vento que explicasse.

Foi quando o medo, esse hóspede indesejado, fez morada definitiva em seu peito.

***

Dona Conceição era dessas mulheres que o tempo esqueceu de envelhecer por completo. Vizinha de Marina havia dois anos, carregava nos olhos um brilho de quem sabe coisas que os livros não ensinam. Foi ela quem notou as olheiras profundas, o andar hesitante, o jeito de quem carrega mundos invisíveis nas costas.

“Filha”, disse um dia no elevador, com voz de veludo antigo, “tem coisa que a gente não resolve sozinha. Tem dor que não é só nossa.”

Marina quis responder que estava tudo bem, essa mentira social que vestimos como roupa de domingo. Mas as palavras fugiram. No lugar delas, lágrimas. Lágrimas que pareciam vir de muito longe, de muito antes.

“Vem comigo”, Dona Conceição pegou sua mão com firmeza de mãe. “Conheço um lugar onde as respostas moram.”

O terreiro ficava numa casa simples, dessas que passam despercebidas entre o vaivém da cidade. Mas assim que Marina cruzou o portão, sentiu. O ar era diferente. Mais denso, mais vivo, como se cada molécula carregasse histórias.

Mãe Joana a recebeu sem surpresa, como quem esperava visita marcada havia tempos. Era mulher de presença forte, dessas que ocupam o espaço, não com o corpo, mas com a alma.

“Senta, filha. Os espíritos me contaram que você viria.”

A consulta foi viagem sem sair do lugar. Mãe Joana acendeu velas que iluminavam mais que o ambiente, recolheu-se em prece e começou a falar palavras que não eram mais suas. E então, como quem abre cortina de teatro, as revelações começaram.

“Você traz mediunidade adormecida, filha. Mediunidade que grita para acordar. Mas não é presente sem preço. É ferramenta de resgate.”

Marina sentiu o corpo todo tremer, como folha dançado ao vento das verdades.

“Houve uma vida”, continuou Mãe Joana, olhos fechados vendo o invisível, “onde você tinha poder. Poder de ajudar, de socorrer. Mas escolheu a indiferença. Fechou portas, negou pão, virou costas ao sofrimento. Agora, as mesmas almas que negligenciou estãode volta. Não por vingança, mas por justiça divina. Querem que você distribua nesta vida o que não quis distribuir na outra: compaixão.”

As lágrimas de Marina agora eram rio caudaloso. Cada uma carregando uma memória esquecida. Uma lembrança sem se lembrar. Sentia a dor de cada porta fechada, cada mão não estendida.

“Mas o Pai é generoso”, Mãe Joana abriu sorriso de sol após tempestade. “Te dá chance de reescrever a história. Sua mediunidade é bênção. Ponte entre mundos, entre dores, entre perdões. Mas ela precisa ser trabalhada, disciplinada. Como ferro em brasa que vira ferramenta útil.”

Começou então a jornada de Marina pelo território sagrado da Umbanda. Toda semana, às terças e sextas, ela cruzava o portão do terreiro como quem entra em universidade para a alma.

Pai José, preto-velho de fala mansa e sabedoria infinita, foi seu primeiro professor do invisível.

“Mediunidade, minha filha”, dizia ele pitando seu cachimbo de palavras sábias, “é que nem instrumento musical. Se não afina, sai som torto. Se não pratica, enferruja. E se toca sem amor, é só barulho.”

Marina aprendia. Aprendia a distinguir as vozes. Havia os sofredores, almas perdidas em suas próprias dores. Havia os obsessores, presos em correntes de mágoa. E havia os guias, faróis no mar revolto do plano astral.

“Primeiro”, ensinava Dona Maria Padilha, entidade de força e doçura, “você precisa se perdoar. Não adianta querer curar ferida dos outros com as próprias mãos machucadas.”

Era trabalho de formiga. Cada sessão, Marina enfrentava um pedaço de si mesma. As incorporações começaram devagar, como quem aprende a dançar. Primeiro os tremores, depois as lágrimas, então as palavras que vinham de longe.

Caboclo Pena Branca foi o primeiro a se apresentar completamente. Chegou numa tarde de chuva, quando Marina já conseguia abrir seus canais com mais facilidade.

“Vim te ensinar sobre coragem”, disse através dela, voz forte que não era sua. “Coragem não é ausência de medo. Coragem é fazer o certo, mesmo tremendo.”

Cada guia trazia uma lição. Vovó Catarina ensinava sobre paciência – “Planta não cresce puxando, minha filha”. Exu Tiriri mostrava que até nas encruzilhadas há caminho certo. As crianças da linha de Cosme e Damião lembravam que a pureza mora na simplicidade.

Marina descobria que mediunidade não era dom místico de escolhidos. Era trabalho de limpeza interna e de disciplina externa. Cada vez que incorporava para ajudar alguém, sentia um nó de sua culpa antiga se desfazer.

“Sabe qual é o segredo?”, perguntou-lhe certa vez Maria Molambo, gargalhando com sabedoria de quem conhece todas as dores. “O segredo é entender que servir ao outro é servir a si mesmo. Para cada lágrima que você seca de alguém, uma lágrima é secada do seu próprio passado.”

Aos poucos, Marina foi entendendo a engenharia divina de seu resgate. Cada consulta que dava, cada obsessor que ajudava a encaminhar, cada mensagem de consolo que transmitia, era tijolo na construção de sua nova história.

Houve a noite em que incorporou um espírito sofredor, homem que em vida tinha sido dos que ela negara ajuda em existência passada. O encontro foi tsunami de emoções. Ele chorava através dela, ela chorava com ele. No abraço mediúnico, os dois acabaram se perdoando.

“É assim mesmo”, explicou Mãe Joana depois. “O perdão é porta de duas vias. Quando perdoamos, somos perdoados. Quando amamos, aprendemos a nos amar.”

Marina começou a viver a mediunidade fora do terreiro também. No trabalho, passou a ver além dos números. Via as dores escondidas dos colegas, as alegrias sufocadas, os medos disfarçados de arrogância. E ajudava, às vezes com a palavra certa, às vezes com um silêncio compreensivo.

***

Seis meses depois, Marina já não era a mesma. Não que tivesse mudado por fora – continuava contadora, continuava no mesmo apartamento. Mas por dentro, uma revolução silenciosa tinha acontecido.

Os fenômenos estranhos cessaram. Não porque os espíritos tivessem ido embora, mas porque ela aprendera a conviver com eles. Seu apartamento, antes túmulo de solidão, virou casa de portas abertas ao invisível. Mas abertas com ordem, com disciplina, com propósito.

“Mediunidade sem caridade”, repetia sempre o ensinamento de Pai José, “é como fonte sem água. Pode até ser bonita, mas não mata sede de ninguém.”

E Marina agora mantinha água para os guias, acendia velas com intenção de luz, fazia suas orações como quem cultiva jardim. Descobriu que espiritualidade não era fugir do mundo, mas abraçá-lo com olhos que veem além.

Uma noite, durante trabalho especial de cura, Marina recebeu a visita mais importante. Não era guia conhecido, não era entidade nomeada. Era uma presença de luz tão intensa que todos no terreiro a sentiram.

“Filha”, disse a voz através dela, como se fosse uma melodia vibrando no ar, “chegou a hora de entender a lição maior. Você achou que estava pagando dívida. Mas Deus não é cobrador. Deus é amor. Cada serviço que prestou não foi pagamento. Foi aprendizado.”

A entidade continuou e Marina sentia cada palavra como  um novo batismo:

“A verdadeira mediunidade não é poder. É amor em ação. Cada vez que você usa seus dons para ajudar, não está diminuindo débito. Está aumentando sua luz. A evolução não é conta que se quita. É espiral que sobe, sempre em expansão, sempre em direção a Deus.”

Marina chorava, mas eram lágrimas diferentes. Lágrimas de quem finalmente entende. Todo sofrimento pelo qual passou, toda dor que carregou, tinha propósito maior que castigo. Era escultura divina, cinzel trabalhando pedra bruta até revelar o anjo escondido.

“Olha”, disse Caboclo Pena Branca numa de suas últimas incorporações naquela noite, “cada pessoa que você ajuda não é só uma alma necessitada. É professor disfarçado. Cada obsessor que encaminha não é só um espírito perdido. É mestre ensinando sobre perdão.”

Marina começou a dar palestras no terreiro, compartilhando sua jornada. Descobriu que sua história tocava outras histórias. Quantos não carregavam mediunidade sufocada por medo? Quantos não fugiam do chamado por não entender que era convite ao amor, não ao sacrifício?

“A Umbanda”, ela dizia com propriedade de quem viveu, “não é religião de mistérios assustadores. É escola de amor vivo. Cada guia, cada entidade, cada ritual, tudo aponta para a mesma direção: amar ao próximo como caminho de amar a si mesmo.”

***

Um ano depois do primeiro fenômeno estranho, Marina acordou numa manhã de domingo sem sonhos perturbadores. Pela primeira vez em muito tempo, o silêncio do apartamento não pesava. Era silêncio habitado, preenchido de presenças amigas.

Preparou café – agora na temperatura certa – e foi à varanda. A cidade acordava devagar, enquanto ela a contemplava com olhos novos. Cada prédio guardava histórias, cada janela emoldurava dramas e comédias humanas. E ela, Marina de um mar agora conhecido, navegava com desenvoltura entre dois mundos.

O telefone tocou. Era Dona Conceição.

“Filha, tem uma moça aqui no prédio passando pelo que você passou. Tá com medo, coitada. Será que…”

Marina sorriu. O ciclo continuava, mas agora ela estava do outro lado. Do lado de quem estende a mão, de quem abre a porta, de quem diz “vem, eu te entendo”.

“Manda ela subir, Dona Conceição. Vou fazer um café fresco.”

***

Mãe Joana costumava dizer que a vida é como rio. Às vezes encontra pedra, às vezes faz curva, mas sempre segue em frente. Marina aprendeu que mediunidade é ser uma ponte sobre esse rio. Ponte que conecta margens, que permite travessias, que une o que parecia separado.

Naquela tarde de domingo, enquanto ouvia os relatos assustados da vizinha sobre copos que se moviam e vozes que sussurravam, Marina se viu refletida. Não com pena de si mesma, mas com gratidão. Cada dor tinha sido um degrau, cada medo tinha sido dedicado professor.

“Sabe”, disse à moça trêmula à sua frente, servindo chá de erva-cidreira com dose generosa de compreensão, “eu passei por isso também. E vou te contar um segredo: não é castigo. É convite. Convite para descobrir que somos muito mais do que pensamos ser.”

A moça, Letícia, ouvia com olhos arregalados de quem encontra oásis no deserto.

“Mas eu tenho tanto medo…”

“O medo”, Marina pegou suas mãos com a mesma firmeza com que Dona Conceição havia pegado as suas, “é só o amor que ainda não sabe seu verdadeiro nome. Vem, vou te levar num lugar onde vão te ensinar a transformar esse medo em força. Onde você vai descobrir que essas vozes que te assustam podem virar coro de anjos.”

E assim, Marina cumpria seu propósito. Não mais como devedora de carmas antigos, mas como servidora do amor presente. Descobrira que a verdadeira evolução não está em quitar débitos com o passado, mas em investir no futuro. Cada mão estendida, cada palavra de conforto, cada gesto de compaixão era semente plantada no jardim infinito da existência.

A Umbanda lhe ensinara que os orixás dançam em tudo: no vento que balança as folhas, na água que lava as mágoas, no fogo que transforma, na terra que acolhe. E principalmente, dançam no coração humano quando este escolhe o amor sobre o medo, o serviço sobre o egoísmo, a luz sobre a sombra.

Marina agora sabia: mediunidade não era cruz para carregar, mas asa para voar. E voava, entre mundos e consciências, espalhando a mensagem que os guias sussurravam em seus ouvidos e gritavam em seu coração – somos todos um, tecidos no mesmo tear divino. E cada fio que ajudamos a realinhar fortalece o tecido inteiro da existência.

O mar que ela carregava no nome, finalmente havia encontrado sua praia. E as ondas que chegavam, uma após outra, não vinham para destruir. Vinham para renovar, para limpar, para lembrar que a vida é movimento constante em direção ao amor.

Naquela noite, ao deitar, Marina fez sua oração como sempre. Mas desta vez, além de pedir, agradeceu. Agradeceu os medos que viraram coragem. As dores que viraram compreensão. Os fantasmas que viraram mestres. E principalmente, agradeceu a oportunidade de descobrir que servir ao próximo não é penitência – é privilégio.

As vozes continuavam lá. Mas agora ela sabia seus nomes. Chamavam-se Amor, Compaixão, Serviço e Evolução. E Marina, contadora que aprendeu que as contas mais importantes não são as que fecham, mas as que se multiplicam em bênçãos, dormiu embalada pela mais suave de todas as certezas:

Estava exatamente onde deveria estar. Fazendo exatamente o que deveria fazer. Sendo exatamente quem sempre foi destinada a ser – ligação de luz entre mundos, tradutora do amor divino, médium não por castigo, mas por missão.

E no terreiro, as velas continuavam acesas, os atabaques continuavam soando, os guias continuavam chegando. Porque enquanto houver dor para consolar, medo para transformar, amor para ensinar, a Umbanda continuará de portas abertas, acolhendo filhos perdidos e mostrando que o caminho de volta para casa passa sempre pelo coração do próximo.

Axé.

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