O Canto de Iara

O sol se punha, como uma gota de sangue diluída nas águas do horizonte, enquanto Teodoro Albuquerque de Mendonça contemplava os canaviais que se estendiam para além do olhar. As folhas cortantes da cana dançavam ao vento, como se fossem lâminas afiadas cortando o próprio tempo. Não eram apenas canas que cresciam naquelas terras, eram fortunas que alimentavam uma sociedade inteira, sustentada sobre os ombros curvados de homens e mulheres, cujos nomes, a História fazia questão de esquecer.

Filho único do Coronel Jerônimo de Mendonça, herdeiro único do Senhor de Engenho de Águas Claras, Teodoro nascera entre sedas importadas da França e pratarias portuguesas. Sua mãe, Dona Eulália, descendente de fidalgos lisboetas, ensinara-lhe as letras e os modos, os versos de Camões e as ideias que ventilavam da Europa.

“Os pensamentos são como pássaros,” dizia ela, “alguns voam para longe do ninho antes mesmo de saberem que têm asas.”

E foi assim com Teodoro. Desde menino, suas perguntas o inquietavam:

“Por que os negros trabalham sob o sol enquanto nós ficamos à sombra, mamãe?”

“Por que Deus fez pessoas para serem propriedades de outras?”

Dona Eulália respondia sempre com um sorriso amarelado, como folha de outono que se despede do galho:

“São as ordens do mundo, meu filho. Alguns nascem para comandar, outros para servir.”

Mas as sementes da dúvida já haviam sido plantadas naquela terra fértil que era a mente do jovem Teodoro. Aos vinte e três anos, quando retornou de seus estudos em Portugal, trazia não apenas conhecimentos de Direito e Filosofia, mas também ideias perigosas, quais frutos proibidos colhidos da árvore da sabedoria.

E foi numa tarde úmida de dezembro que Teodoro a viu pela primeira vez. O céu estava carregado, pesado como consciência culpada. Iara colhia flores no jardim da casa-grande, suas mãos delicadas tocavam as pétalas como se estivessem a acariciar sonhos. Filha de Anacleto, o negro curandeiro do Engenho, respeitado até mesmo pelos brancos das redondezas, e  Dandara, parteira que trouxera à luz metade das crianças da região, Iara crescera em um mundo de obediências e castigos.

Seu nome significava “senhora das águas” na língua tupi, embora de tupi-guarani ela não tivesse nada além de seus olhos marcantes, profundos e escuros como noites sem lua. Quando Teodoro a viu, sentiu como se o mundo inteiro tivesse sido recriado naquele instante. Sentiu como se, até então, tivesse vivido uma realidade desbotada e, de repente, as cores explodiram diante dele, inundando seus sentidos.

“Como te chamas?” perguntou, com a voz entrecortada pela emoção que nem ele mesmo compreendia.

“Sou Iara, senhor,” respondeu ela, baixando os olhos, num gesto aprendido desde o berço.

“Não me chame de senhor,” pediu Teodoro. “Você deve saber o meu nome.”

Ela levantou o olhar, surpresa, e naquele momento seus olhos se encontraram como duas estrelas que colidem no firmamento, criando uma nova constelação.

A partir daquele dia, Teodoro passou a procurar motivos para estar perto do jardim. Descobriu que Iara conhecia o nome e as propriedades de cada planta, sabia ler os sinais do tempo nas nuvens e nas formigas, e carregava histórias ancestrais do seu povo na ponta da língua.

“Meu avô dizia que cada estrela no céu é um antepassado que nos observa,” contou ela numa noite em que se encontraram escondidos sob a sombra protetora de uma  mangueira. “Quando estamos perdidos, são eles que iluminam nosso caminho.”

Teodoro, criado entre a racionalidade europeia e a fé católica, sentia-se fascinado por aquela outra forma de entender o mundo. Em contrapartida, ele lhe falava sobre os livros que lia, sobre as ideias de liberdade que circulavam no Velho Mundo, sobre o sonho de um Brasil onde todos fossem iguais.

“Existem homens na Europa que dizem que todos nascem livres,” explicava ele. “Que a escravidão é uma mancha na alma da humanidade.”

“E o que dizem as mulheres?” perguntou Iara, com um sorriso que guardava mundos.

Teodoro enrubesceu. Nunca havia pensado nisso. Na sociedade em que vivera até então, a opinião das mulheres contava muito pouco. E foi assim que ela o ensinava, sem saber que ensinava. Foi assim que seu amor cresceu, alimentado por conversas roubadas do tempo, trocadas nos momentos em que o mundo não olhava.

Os meses se passaram como águas de rio que não voltam à nascente. O sentimento entre Teodoro e Iara floresceu nas sombras, regado pelo segredo e pelo perigo. Ele lhe ensinava a ler e escrever, ela lhe mostrava a sabedoria das ervas e dos ritmos da terra. Juntos, sonhavam com um futuro impossível.

“Um dia, serei um homem importante,” prometia Teodoro. “Mudarei as leis deste país. E então, poderemos viver nosso amor à luz do dia.”

Iara sorria, mas era um sorriso triste, como quem sabe que há sonhos que nunca abandonam o mundo dos sonhos.

“Nosso amor já é livre, Teodoro,” dizia ela. “Livre como o vento. Não precisa de permissão para existir.”

Mas o vento, por mais livre que seja, sempre encontra barreiras em seu caminho.

Foi Timóteo, capataz fiel ao Coronel Jerônimo, quem primeiro desconfiou dos encontros secretos. Homem de alma enrugada pelo ódio e inveja, observava Teodoro e Iara com olhos que cuspiam malícia.

“O sinhozinho anda muito interessado nas histórias dessa negrinha,” comentou ele com Dona Eulália numa tarde, enquanto observavam Teodoro conversando com Iara perto da casa de farinha.

A sementes da suspeita, uma vez plantadas, cresceram rápido no coração de Dona Eulália. Começou a vigiar o filho, a notar suas ausências, a perceber seus olhares perdidos durante as refeições. Uma noite, seguiu-o até a senzala e viu o impensável: seu único filho, herdeiro de uma das maiores fortunas da província, nos braços de uma reles escrava.

O grito que escapou de sua garganta rasgou a noite como uma faca afiada. Teodoro e Iara se separaram assustados, como dois passarinhos surpreendidos por um caçador.

“Mãe, eu posso explicar,” começou Teodoro, mas as palavras morreram em sua boca diante do olhar gélido de Dona Eulália.

“Não há explicação para essa vergonha,” sentenciou ela, com voz trêmula. “Seu pai saberá disso pela manhã.”

E saiu arrastando o vestido de seda pela terra, como quem carrega o peso do mundo nas costas.

Naquela noite, Teodoro não dormiu. Planejou fugas, imaginou-se abandonando tudo para viver com Iara em algum lugar distante. Pensou em confessar tudo ao pai, em defender seu amor com argumentos racionais e apaixonados. Mas conhecia bem o Coronel Jerônimo: homem de princípios rígidos como aço, para quem a honra da família valia mais que qualquer sentimento.

A manhã chegou carregada de nuvens cinzentas. O Coronel mandou chamar o filho ao seu escritório, sala sombria onde os retratos dos antepassados pareciam julgar cada palavra dita ali dentro.

“É verdade o que sua mãe me contou?” perguntou, sem rodeios, os olhos fixos nos papéis sobre a mesa, como se não pudesse encarar o próprio filho.

Teodoro sentiu o coração acelerar, mas já havia tomado sua decisão. Não negaria seu amor. Não mentiria sobre o único sentimento verdadeiro que experimentara em toda sua vida.

“Sim, pai. Eu amo Iara. E pretendo me casar com ela.”

O riso do Coronel foi como vidro quebrado se espalhando pelo chão.

“Casar? Com uma escrava? Você perdeu o juízo, rapaz? Sabe o escândalo que isso causaria? A desonra para o nosso nome?”

“Mais desonroso é tratar seres humanos como mercadoria,” respondeu Teodoro, com uma coragem que o surpreendeu. “O mundo está mudando, pai. Há homens lutando pela abolição em todo o país. Em breve, a escravidão será apenas uma marca vergonhosa em nossa história.”

“Não enquanto eu viver,” rugiu o Coronel, batendo o punho na mesa. “E essa negra… essa… Iara. Vou vendê-la para o engenho dos Almeida, do outro lado da província. Você nunca mais a verá.”

Teodoro sentiu como se o chão se abrisse sob seus pés.

“Não faça isso, pai. Por favor. Farei qualquer coisa. Renunciarei à herança, irei para outro país, mas não a separe de mim.”

Pela primeira vez naquela conversa, o Coronel olhou diretamente nos olhos do filho. E o que Teodoro viu no olhar do pai foi algo que nunca havia percebido antes: medo. Medo de um mundo que mudava rápido demais, medo de perder o controle, medo de que o filho representasse um futuro que ele não compreendia e não aceitava.

“Você tem até amanhã para esquecer essa loucura,” disse o Coronel, finalmente. “Ou enfrentará as consequências de sua rebeldia.”

Aquela noite, na senzala, Iara cantava baixinho enquanto trançava os cabelos de uma menina pequena. Era uma canção em iorubá que sua avó lhe ensinara, sobre pássaros que voam além do horizonte, carregando sonhos em suas asas.

Não percebeu quando dois homens entraram sorrateiramente. Timóteo e João Carrasco, outro capataz conhecido por sua crueldade, a agarraram antes que pudesse gritar.

“O Coronel mandou dar um jeito em você,” sussurrou Timóteo em seu ouvido, enquanto tapava sua boca com força. “Disse que você está enfeitiçando o sinhozinho.”

Arrastaram-na para fora, para a escuridão da noite sem lua. Iara lutou com todas as suas forças, mas eram dois homens fortes contra uma jovem franzina. Levaram-na até a margem do rio, onde as águas corriam rápidas e escuras, como presságios de morte.

“O que achou que aconteceria, negrinha?” provocou João Carrasco, segurando-a pelos cabelos. “Pensou que poderia ser a sinhá do engenho? Que um branco ia largar tudo por você?”

Iara não respondeu. Em seu coração, sabia que aquela seria sua última noite na terra. Mas não daria a eles o prazer de vê-la implorar ou chorar. Em vez disso, começou a cantar novamente, sua voz suave cortando o silêncio da noite como uma lâmina afiada.

Irritados com aquela atitude, os dois homens a espancaram até que o canto cessou. Depois, amarraram pedras em seus pés e a jogaram nas águas profundas do rio.

“O Coronel disse para fazer parecer que ela fugiu,” comentou Timóteo, enquanto lavava o sangue das mãos nas águas do rio. “Ninguém vai sentir falta de mais uma escrava desaparecida.”

Mas estavam enganados. Porque há amores que alteram o curso dos rios e mudam o destino de famílias inteiras.

Na manhã seguinte, Teodoro procurou por Iara em todo o engenho. Ninguém sabia – ou fingia não saber – de seu paradeiro. Foi Seu Anacleto, o pai de Iara, quem finalmente lhe contou a verdade, com lágrimas nos olhos enrugados pelo tempo.

“Minha filha está com os ancestrais agora, sinhozinho,” disse o velho, com voz embargada. “A água do rio a levou, mas não foi o rio que a matou.”

Teodoro sentiu como se o mundo inteiro desabasse sobre ele. A dor era tão intensa que parecia física, como se cada pedaço de seu corpo estivesse sendo rasgado.

“Quem?” perguntou, com voz estrangulada. “Quem fez isso?”

“Os mesmos que sempre fazem,” respondeu Seu Anacleto, enigmático. “Os que têm medo da mudança, os que veem na pele escura um sinal de inferioridade, os que confundem poder com direito.”

Teodoro sabia. No fundo de sua alma, sabia quem havia ordenado aquele crime. Voltou para a casa-grande como um furacão, irrompeu no escritório do pai sem bater.

“Você a matou!” gritou, com o rosto banhado em lágrimas. “Mandou matá-la como se ela não fosse nada, como se não fosse um ser humano!”

O Coronel Jerônimo levantou-se lentamente, o rosto uma máscara de pedra.

“Não sei do que está falando,” disse, com voz controlada. “A escrava fugiu. Acontece frequentemente.”

“Mentira!” rugiu Teodoro. “Iara jamais fugiria sem me dizer. Vocês a mataram porque ela ousou amar e ser amada. Porque ela provava que todas as suas convicções sobre superioridade são mentiras!”

“Chega!” explodiu o Coronel. “Não admitirei acusações em minha própria casa. Você está perturbado, confuso. Irá para Portugal no próximo navio. Lá, longe dessa… influência negativa, recuperará o juízo.”

Mas Teodoro já não ouvia. Em sua mente, formava-se uma certeza terrível, clara como cristal: não havia lugar para ele naquele mundo de crueldade e injustiça.

“Não haverá Portugal, nem futuro,” disse, com uma calma assustadora. “Diga à minha mãe que a amo, apesar de tudo.”

E saiu, deixando o pai perplexo.

Naquela tarde, Teodoro escreveu longamente em seu diário. Registrou seu amor por Iara, suas ideias abolicionistas, sua visão de um Brasil onde todos fossem iguais. Escreveu seu testamento moral, seu legado para um futuro que não veria.

Depois, vestiu sua melhor roupa, aquela que usara no baile de seu aniversário de vinte anos. Penteou os cabelos com cuidado, como se fosse encontrar sua amada. Pegou a pistola que ganhara do padrinho aos dezoito anos, aquela que nunca usara por detestar armas e violência.

Caminhando lentamente até a margem do rio, no mesmo local onde Iara havia sido jogada na noite anterior, Teodoro respirou fundo, sentindo o cheiro da terra molhada, ouvindo o murmúrio das águas. Pensou ver, por um instante, o rosto de sua amada refletido nas águas escuras, sorrindo para ele.

“Estou indo, meu amor,” sussurrou.

O som do tiro ecoou pela fazenda como um trovão solitário.

Encontraram seu corpo ao amanhecer, parcialmente submerso nas águas do rio. Em seu bolso, o diário molhado ainda preservava suas últimas palavras: “Há amores que nem a morte separa. Em outra vida, em um mundo mais justo, nos encontraremos novamente, minha Iara.”

Dona Eulália, ao receber a notícia, não chorou, não gritou. Seu silêncio foi mais aterrorizante que qualquer manifestação de dor. Durante dias, permaneceu sentada na varanda, olhando para o horizonte, para os canaviais que se estendiam até onde a vista alcançava. Quando finalmente falou, foi para perguntar a uma escrava mais velha se as estrelas eram realmente antepassados que nos observavam do céu.

Aos poucos, sua mente foi se descolando da realidade. Começou a procurar por Teodoro em todos os cantos do engenho, a preparar seu quarto todas as noites, a conversar com o filho ausente como se ele estivesse ali, ao seu lado, embora somente ela conseguisse vê-lo. Por vezes, em seus delírios, dizia que Teodoro havia partido numa longa viagem, mas logo voltaria, trazendo uma noiva bonita.

O Coronel Jerônimo, homem acostumado a controlar tudo e todos ao seu redor, viu-se impotente diante da loucura da esposa e do fantasma do filho. As noites se tornaram um martírio, povoadas por pesadelos onde Teodoro e Iara apareciam de mãos dadas, seus corpos encharcados, acusando-o com olhares silenciosos.

Durante o dia, o trabalho no engenho continuava, mas o coração do Coronel emudecia cada vez mais. Tornou-se taciturno, isolado, como se a solidão pudesse aplacar sua culpa.

Foi numa tarde de tempestade, exatamente um ano após a morte de Teodoro, que o Coronel Jerônimo caiu de joelhos no meio do canavial. A chuva castigava seu corpo, mas ele não se importava. Pela primeira vez desde a infância, chorou. Chorou pelo filho perdido, pela esposa ensandecida, por Iara, pela vida que poderia ter sido e não foi.

Quando retornou à casa-grande, encharcado e envelhecido dez anos numa só tarde, tomou uma decisão que surpreenderia toda a província. Chamou o tabelião e, diante dele, assinou a alforria de todos os seus escravos. Depois, reuniu-os no terreiro e, com voz trêmula, pediu perdão.

“Não posso trazer meu filho de volta,” disse. “Nem a moça que ele amava. Mas posso honrar o sonho dele de um mundo mais justo. A partir de hoje, vocês são homens e mulheres livres.”

Os ex-escravos receberam a notícia com desconfiança inicial, depois com alegria contida, e finalmente com choro aberto. Pai Anacleto, o mais velho e respeitado entre eles, aproximou-se do Coronel e colocou a mão em seu ombro, num gesto que teria sido inimaginável apenas um dia antes.

“Sua dor não traz minha filha de volta,” disse o velho. “Nem seu arrependimento devolve seu filho à vida. Mas talvez, agora, os espíritos dos dois possam encontrar alguma paz.”

Anos se passaram. O Engenho de Águas Claras se transformou. Os antigos escravos, agora trabalhadores livres e remunerados, permaneceram nas terras, construindo uma comunidade próspera. O Coronel Jerônimo, um homem mudado, dedicou seus últimos anos à causa abolicionista, usando sua influência para pressionar outros fazendeiros a libertarem seus escravos.

Dona Eulália nunca recuperou a sanidade. Viveu até idade avançada, sempre à espera do filho que nunca voltou. Em suas confusões mentais, tinha momentos de rara lucidez em que dizia ver Teodoro e uma moça de pele escura caminhando de mãos dadas entre os canaviais, ao pôr do sol.

Até hoje, os moradores mais antigos da região contam que, nas noites de lua cheia, é possível ouvir o canto de uma jovem se misturando ao barulho das águas do rio. Dizem que é Iara, a senhora das águas, chamando por seu amor. E que, às vezes, ouve-se também a resposta: a voz de Teodoro, prometendo que encontrará um caminho para ficar com ela, nem que seja preciso esperar o país se tornar, finalmente, um lugar verdadeiramente livre e justo.

São histórias que o vento carrega, como sementes de esperança plantadas em terra fértil. Porque há amores que não cabem no tempo de uma vida, há amores que se transbordam para o eterno. E há mortes que, em vez de finais, são apenas começos de histórias muito mais longas – histórias sobre como o sentimento pode mudar não apenas corações, mas sociedades inteiras.

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